segunda-feira, 18 de maio de 2015

#Resenha: “Mad Max: estrada da fúria” é clássico e é contemporâneo

Cumpro todo o ritual que a ocasião pede: entro no saguão do cinema (um dos poucos de rua que ainda não viraram igreja), me dirijo ao guichê, compro o ingresso (“meia entrada”, com carteirinha de estudante original), escolho o melhor lugar em frente à grande tela e pago no cartão. Enquanto aguardo, sou inundado por pôsteres gigantes de “blockbusters” em cartaz e futuros lançamentos. Não são apenas pôsteres, há displays, lambe-lambes e telas que mostram as mesmas imagens acrescidas de pequenas animações.
Um cheiro de pipoca estrategicamente ecoa pelo salão, estourando cheiro de manteiga e me cativando a gastar mais alguns trocados no combo. Como eu, comem outros, pois ninguém resiste à tradição de pipoquinha, refrigerante e cineminha. Uma vez na sala, as luzes logo se apagam e mais divulgação vem aí: começam os trailers.
Então temos lá, no telão de boas proporções, que junto ao som poderoso e ao breu, transportam o público (majoritariamente casais ou familiares) para o mundo mágico da sétima arte. No entanto, me incomodo: que mundo é esse cujas novidades se restringem à requentações dos sucessos de outrora? Poxa, estamos falando da maior indústria cinematográfica do mundo, a que define e dita as regras de produção, distribuição, narrativa e exibição no circuito comercial. A mesma que investe em tecnologias e pesquisas cada vez mais surpreendentes no quesito “efeitos visuais”, que movimenta milhões de dólares pelo mundo e que mesmo assim, apresenta a continuação ou o “reboot” de franquias já consolidadas no imaginário coletivo.
Por isso, já me sento na poltrona com a sorte lançada. Sim, fui assistir ao hollywoodiano “Mad Max: estrada da fúria”. Confesso que fui às cegas, evitei ler críticas, releases, opiniões, twittes ou qualquer outra informação que pudesse colaborar para um pré-conceito em relação à produção. Minha desinformação era tamanha que eu não sabia se a película entraria no rótulo das continuações ou dos “reboots” que tomaram a temporada, juntamente com os filmes de heróis, claro. E, surpresa, o filme é bom!
Para saciar a curiosidade do leitor, já adianto que é uma continuação legítima dos “Mad Max” anteriores, estrelados por um jovem Mel Gibson lá na década de 1980. No entanto, sai Gibson e entra Tom Hardy, queridinho dos filmes de ação que já esteve em “Batman: o cavaleiro das trevas ressurge” e “A Origem”. Mantendo a unidade criativa da tetralogia, está o diretor australiano George Miller, que também cuidou do roteiro e da produção de todos os filmes.
Apresentações feitas, já temos um Max sofrido na tela, que logo é capturado – mas não sem uma cena de perseguição que mostra a que o filme veio. E daí vale uma parada estratégica para citar um ponto positivo da narrativa: ela não subestima o expectador. Não temos narrativa em “off”, não temos “flashbacks” nem nada, Miller não se preocupa em apresentar os personagens e o conflito de forma didática, como os filmes de grandes bilheterias costumam. Ou ao menos ele não faz isso da forma em que estamos acostumados.
Ora, acompanhe comigo, trata-se de um personagem consagrado, com mais de 30 anos de história, citado diversas vezes no universo da cultura pop, logo, o diretor acerta em cheio em não entrar em detalhes claros. No entanto, está tudo lá: sabemos que Max perdeu alguém importante na sua vida, e por isso vaga por aí (tormentas dos filmes anteriores?); sabemos também  que o mundo entrou em colapso e que a história se passa num universo distópico, que sofre com falta d’água, comida e petróleo. Daí vem o trunfo do diretor, que transforma toda a carga informacional necessária em elementos inseridos nas cenas, seja por um cenário composto por alfaces num mundo desértico, seja por fantasmas que perturbam o herói
Uma confissão que devo ao leitor – e que talvez devesse ter feito no começo dessa resenha – é o fato de que, apesar de clássicos, não assisti aos filmes anteriores. Mas pelos fatores enunciados acima, não fizeram falta, pelo contrário, instigaram ainda mais a necessidade de vê-los. É incrível notar o esmero em compor personagens das mais diversas feições, que carregam a mítica aura “oitentista” de samurais, punks, heróis truculentos e donzelas em perigo. Tudo é tão caricato que nomes passam a ser desnecessários, você conhece Max e Furiosa, que quase rouba a posição de protagonista do personagem.
Furiosa é interpretada por Charlize Theron, atriz de produções como “Hancock” e “Prometheus”, de quem poucas vezes nos lembramos de forma apelativa sexualmente. Furiosa é durona, e por algum motivo perdeu o braço. Mas aqui não há espaço para traumas, apenas para desejos de mudança e busca por redenção. Ela é o elo emocional com Max, um cara de poucas palavras – os diálogos mesmo são enxutos, compensados por cenas de ação esplendorosas, bem feitas e montadas, que dão credibilidade a esse mundo árido.
Aliás, por falar em mundo, o cenário das duas horas de experiência fílmica é composto de apenas dois elementos: carros turbinados remontados e desertos sem fim (e um pouquinho da cidade inicial e final da história). Pois é, o título “estrada da fúria” não surge a toa e te leva para um passeio árido, selvagem e bruto, rasgado por cenários e batalhas, furado de balas e facas, com pausas para mostrar donzelas que precisam ser salvas e outros tipos caricatos que compõem esse universo, como mães de leite, garotos de guerra e chefões. É ação “on the road”, literalmente.
Nesse sentido, é impossível não perceber a aura gamística ali. Adultos irão se recordar de “Rock’n Roll Racing”, jovens e crianças irão relembrar “Far Cry”, tornando o filme uma experiência intergeracional regada a guitarras, baterias e nitros, sendo quase um “Velozes e Furiosos” na terra de ninguém de um faroeste. E continuando as referencias, fica muito explícito as influencias do cineasta russo Dzinga Vertov ao longo da montagem, antecipando ações de forma até mesmo excessiva. Pode acreditar, se algum personagem se mostra virtuoso em algum momento, fatalmente lhe acontecerá algo em outro. E assim vai se carregando a trama.



Sendo assim, nem só de aspectos positivos é composto esse filme. De tão frenético, de fato conseguimos nos apegar pouco a alguns personagens, mesmo sendo a aparição deles recorrente. E é nessa velocidade que algumas motivações se perdem, como Max de repente aderindo ao grupo a ponto de arriscar a vida por mulheres que o queriam morto outrora. Será que fiquei com essa impressão por não ter visto os filmes anteriores?
E para finalizar, algumas especialistas chamaram atenção com críticas que chamavam o novo “Mad Max” de feminista. Evitei-as ler o máximo que pude, e francamente, não acredito nessa afirmação. Muito além de feminismo, o que vemos ali é a motivação de opressores e oprimidos. Num mundo de escassez, a sociedade acaba se constituindo por novos agentes, como mulheres leiteiras, mulheres parideiras, homens guerreiros. Max, ao se juntar a esse grupo de refugiadas, que encontram outro grupo de refugiadas, não faz o mesmo que em “Dança com Lobos” ou “O Último Samurai”, deixando de fazer parte do grupo dominador para reforçar o lado dominado. Max também era prisioneiro, uma “bolsa de sangue” por ser um doador universal, vítimizado pelo sistema. Seu grupo é composto por mulheres, sim. O grupo rival é composto por homens, sim. Contudo, uma visão sexista reduz o contexto de conflito da trama. Por isso, afirmo, o “happy ending” vem graças a uma ação conjunta de uma liderança compartilhada, por Hardy e Theron, ao ponto de ficar difícil imaginar uma continuação sem a presença desta última na franquia.

Em suma, “Mad Max: estrada da fúria” elevou a categoria dos filmes de ação na temporada. Não é denso, mas seu significado também não é esvaziado. Ele apenas é menos didático que outras produções – lembra-se de “Avatar”? – dispensando o apoio de explicações além-roteiro. Enxuto, divertido, frenético, saudoso e, sobretudo, imperdível.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Filmetopia #2



Com Filmetopia, transformamos (no plural, pois foi um trabalho - o primeiro de muitos na área do audiovisual - feito a muitas mãos) o conto anterior em curta.

Ainda que modesto, me mostrou a dificuldade em adaptar uma linguagem a outra, além de dirigir e tal... coisas da tradução intersemiótica.

Confira o resultado aqui!



terça-feira, 23 de setembro de 2014

Filmetopia

- Atenção, o filme já vai começar!

Sala cheia.

“Um trem, um trem... tá vindo em minha direção, tá vindo!”

A menina acorda. Um sonho. Sai andando, ainda sonolenta. Abre a porta do quarto.
Do outro lado, percebe-se a mesma porta abrindo. Porém, ao invés da sala, um palco.
Acostumada a dançar, sussurrou: “É um sonho... um sonho de palco!”.

Na verdade, aquilo não era um palco. Ela tinha entrado poucas vezes em salas como aquela. Resolveu botar reparo: poltronas, tela gigante, projeção.

- Atenção, o filme começou!

Tinha mais coisas naquele palquinho daquela sala de cinema. Uma luminária, um banquinho, um manequim vestido de smoking, chapéu, bigodinho e... uma rosa na mão?

Nesse momento a menina percebe que está tudo preto e branco e seu “ah!” de espanto foi colocado numa enorme placa de legenda que cobriu a tela toda. O motivo do susto? O manequim ganhara vida, simples assim.

Charles (ela decidiu chama-lo assim) andou até o banquinho iluminado pela luz fria da lâmpada e sentou. Cheirou a rosa e, através de novas legendas garrafais, a convidou para dançar. “Danças?”.

A menina adoraria, mas teria que recusar. Não estava vestida apropriadamente, não tinha música... e os movimentos... naquele palquinho... pareceriam... truncados?! Mal terminou de se justificar, com gestos mesmo (afinal, onde estava o som?) e o Charles resolveu tudo. Estalou os dedos – que fizeram barulho de estalo mesmo – e a música começou a tocar. Noutro estalo, a roupa da menina mudou como mágica. Mais um e... cores!

- Atenção, o filme está acabando!

“Uau!”, exclamou a outrora muda garota, que bateu palmas e dançou, enquanto o manequim reparava o quanto eram belas, rosa e mulher. Sentiu uma dor no peito. Derrubou a flor, que caiu como ferro no chão (que dessa vez fez barulho de ferro mesmo). Levantou-se rápido e correu para a penumbra, fora da luz e do foco de qualquer câmera.

A música parou de repente. As cores foram embora de novo. “Charles? Volta aqui!”. Dava para vê-lo, no canto. Assustava um pouco. Ela teve medo, mas foi até as cortinas e o puxou de volta para a cena. Corajosamente iniciaria uma valsa com ele, que... infelizmente, parecia que perdera o encanto.

Foi então que uma luzinha fria acendeu ao lado e iluminou o rosto dela.

Seus olhos ficaram vidrados. Soltou o manequim, que estatelou no chão, e correu até o feixo. "Compre creme dental para seu sorriso ficar, ahhh, um frescor!". Embora pequenina, aquele objeto tinha um poder que ninguém poderia resistir, muito menos a eufórica garotinha. Ninguém resistiria ao poder da TV.

Charles se recuperou e levantou. Enfraquecido, estala os dedos e... nada. Sem cor, Sem som, Sem mágica. Convida a moça para dançar. Está apaixonado! Mas... nada. O sonho terminou, ninguém resiste ao poder da TV.

- Atenção, o filme acabou!

Sala vazia.
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Pouca gente ficou após os créditos. No final, ela olha para ele e o percebe ali, abandonado. Triste, triste, cabisbaixo, pois sua fase dourada talvez tenha passado. Então, levantando calmamente ela vai até Charles e, carinhosamente, retira-lhe a máscara de Chaplin. Por baixo dela estava seu verdadeiro amor.

Duvidas que o cinema seja real?

- Atenção, o cinema é ficcional!

Fim | The End | Fin




sexta-feira, 9 de maio de 2014

A gravata do noivo

Eu era pequenininho, devia ter uns seis aninhos, e fui convidado por um casal que, certamente era mais jovem do que eu sou hoje, para levar a aliança até o altar no dia do seu casamento. E lá fui, junto com minha namoradinha (ah, bons tempos) e meu terninho e meus sapatinhos – que me apertavam os pés e faziam com que eu andasse torto – deve ter sido um evento a parte pra quem me viu pela primeira vez vestido formalmente.

Decorrida a cerimônia, fomos à festa, da qual confesso que não me lembro de muita coisa (não porque estava ruim, mas porque – Deus – eu era novinho demais). Depois de dançar com minha namoradinha, mesmo com os sapatos que ainda teimavam em me apertar os pés, percebi que um aglomerado se formava em torno do noivo.

Tão logo, estavam todos reunidos, animados, munidos de tesoura e uma caixa de sapato. Meu pai percebeu que eu estava sem entender nada, olhando com a mesma cara de assustado quando vi pela primeira vez um trote de faculdade, algum tempo antes (mas essa é outra história, me pergunte depois). Lembro dele me explicando: ”é uma tradição nas festas de casamento, serve para conseguir dinheiro para ajudar o casal a viajar... quando você crescer, vai entender tudinho”.

Até hoje, quando estou num casamento, me vem essa memória de infância. Queria escrever para vocês que aquele garotinho, ao ver aquilo, tão logo, foi correndo até aqueles rapazes fazer farra, arrecadar dinheiro e tesourar a gravata (achando que seria a mesma da cerimônia). Mas não foi como aconteceu e, ao invés disso, fiquei tímido, até que, veja você, já adulto, comecei a ir aos casamentos meus amigos mais próximos.

Hoje sou aquele cara que, se não segura a valorosa caixa do dinheiro, corta a gravata do noivo (ei, essas são funções importantes). Se não dá para fazer essas coisas, certamente estou ao lado do amigo, vibrando a cada contribuição depositada. Conforme meu pai previu, hoje entendi, ali ocorre uma tremenda fraternidade entre os participantes, tudo em prol de uma ajudinha financeira para aquela viagem de pessoas tão queridas.

Ah, e se tem criança por perto, tento levá-las para a brincadeira também, afinal a gravata do noivo é uma tradição que deve ser passada entre as gerações e, quem sabe, uma delas não venha a cortar a minha algum dia.

Agora sei que cresci.


 (Enquanto isso, me pergunto, onde será que está a minha namoradinha daquela época?).

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Os Cavaleiros do Zodíaco R(efeito)

Adoro fanfics, que para quem não sabe, são obras de ficção feitas por fãs em cima das obras originais. É uma homenagem àquela amada história, que não tem pretensão mercadológica (ao contrário da obra que a inspirou), e que mostra a vontade da pessoa em partilhar um pouco de si àquele universo que ela tanta admira.

O protagonista da série original - 
Saint Seiya (Masami Kurumada, 1986)
 - Seiya de Pégaso  

Inspirado pela trilogia do Batman, do Nolan, a qual ele quis recriar o mundo do Cavaleiro das Trevas num universo mais verossímil, onde tramas políticas, corrupção e falhas de caráter são elementosmais comuns do que magia, além da vontade de consertar os buracos de uma série que acompanho há 20 anos e que moldou uma geração de fãs, decidi brincar um pouco com o universo dos guardiões dele, os Cavaleiros do Zodíaco.

Obra japonesa originalmente publicada quadrinhos (os mangás) voltado para meninos e jovens (público Shonnen) pelo mestre Masami Kurumada, que se mostrou inspirado pela mitologia grega em idos de 1986, a série virou animação, filme, boneco, boné, camiseta, games e o que mais se espera de um arrasa quarteirão oriental, além de entrar no imaginário da cultura pop japonesa, brilhando ao lado de outros medalhões como Dragon Ball ou Speed Racer ou Pokémon (a referência varia conforme a idade do freguês!).

O fato da sua sacada ser melhor que suas aptidões para os desenhos e roteiros não inibiu o sucesso da série, que foi maior em países como França, Espanha, México e, olha lá, Brasil, muito pelo fato de que, apesar de limitado, o sensei Kurumada se mostrou um brilhante designer de armaduras para seus personagens. A ideia deu tão certo que várias séries já ampliaram as histórias, tendo participação de outros desenhistas e roteiristas que, na minha opinião, desenvolvem muito melhor toda o background plantado pelo seu criador.

Sendo assim, temos quase que um universo expandido ala Star Wars, só que menos organizado, com maior incoerência e menos planejamento. Daí surgem várias linhas do tempo, histórias e universos paralelas, inconsistência de informações, obras canônicas e por aí vai. Alguns se incomodam, outros nem tanto, apenas apreciando a viagem proporcionada por cada história.

Apesar de tanto aspecto negativo em relação a construção, o fator emocional causado pela série, seu apelo e capacidade de conquistar novos fãs graças ao carisma dos personagens e às inúmeras lições de força e perseverança para se enfrentar as dificuldades mundanas (a grande receita do bolo dos mangás shonnens!), me motivaram a sempre visitar os Cavaleiros de Atena, inclusive na tentativa abaixo de tornar o seu mundo um pouco mais próximo do meu. Que deuses e políticos possam andar sobre o mesmo chão, e que nunca desistamos das pessoas desse mundo.

E aí, você já sentiu o cosmo?

"Saint Seiya-The Lost Canvas" (Shiori Teshirogi, 2006): um dos exemplos de série derivada da original criada pelo desenhista de manga (mangaka) Masami Kurumada, é uma grande homenagem pela qualidade de traços e enredo.



OS CAVALEIROS DO ZODÍACO – R(efeito)

Prólogo

A cada duzentos anos, Atena, deusa da sabedoria e da guerra, reencarna à Terra, na tentativa de combater seus inimigos mitológicos, os deuses do Olimpo. De época em época, surgem para combater ao seu lado, valorosos guerreiros, que pela crença nas palavras de verdade e justiça, lutam ao seu lado, garantindo a paz até a próxima Guerra Sagrada.
Localizado na Grécia, o Santuário concentra as forças fiéis à deusa. Estruturado numa hierarquia baseada nos signos zodíacais, os cavaleiros passam por rigorosos treinamentos, que os preparam para assumir seus postos conforme sua força. Quanto mais determinado, mais o cavaleiro consegue dominar seu cosmo, a energia vital presente em tudo, do organico ao inorganico, favorecendo-o em combate.
Apesar do grande potencial destrutivo – diz a lenda que muitos golpes cortaram o solo, destruíram montanhas, ou mesmo retrocederam o fluxo de enormes quedas d'água - que um guerreiro de Atena pode provocar, seus corpos ainda permanecem vulneráveis, evidenciando suas características e fraquezas humanas. Nesse sentido, surgem as armaduras sagradas – feitas a partir do raro mineral chamado “oricalco”, apelidado ancestralmente de pó de estrela” - que dotadas de imenso potencial defensivo, os protegem em campo de batalha.
Apesar do imenso poder ofensivo e defensivo, raras foram as armaduras que se destacaram por possuirem armas em sua composição. Sendo assim, sempre é esperado dos cavaleiros de Atena combates que utilizem esforço físico e de vontade, superando suas humanidades com o próprio corpo, ficando em último caso o apelo às armas.
Dividida em 88 constelações, os cavaleiros de bronze, àqueles com armaduras menos nobres, irradiadas com pouco “oricalco”, e com menos poder de energia cósmica, formam a linha de frente, sendo os soldados em campo de batalha. Equivalendo-se à grandes comandantes estão os cavaleiros de prata, líderes protegidos com armaduras de média irradiação e maior potencial de cosmo energia, resultando em maior administração entre quantidade de golpes e velocidade, superando os de bronze em todos os sentidos.
Ao contrário das duas classes anteriores, cuja quantidade é desconhecida, estão a elite dourada, composta por signos do zodíaco solar, dispostos num total de 12, com golpes que, segundo relatos, se equiparam à velocidade da luz, e cosmo energia que desperta os mistérios advindos do sétimo sentido – aquele que vem depois da intuição, descrito como o sexto sentido. São eles os guardiões das casas que protegem o único caminho que leva à deusa, tendo o invasor ou visitante passar por cada morador, requerendo ou conquistando o direito de avançar.
No topo, como antessala aos aposentos de Atena, e como chefe político e espiritual, encontra-se o Grande Mestre, geralmente um representante dos guerreiros dourados da geração anterior, eleito pelo ocupante do trono anterior e protetor direto, conselheiro e guia da encarnação da deusa. Note-se que a hierarquia dos habitantes do Santuário não contempla apenas cavaleiros, mas também seus aprendizes, servos, burocratas, além de uma vila, responsável pela manutenção do comércio e serviços prestados dentro da instituição.
Além disso, ela não é composta apenas de homens, apesar de não haver mulheres com o título de amazona. Difícil precisar a origem da tradição, mas, visando minimizar as desvantagens físicas aparentes entre os sexos, e ampliando a igualdade que ambos possuem de gerar cosmo energia elevada, Atena determinou que todas as guerreiras usassem máscara dentro do Santuário e em combates, para que a partir disso, nenhuma mulher fosse menosprezada por colega ou oponente. Tal iniciativa gerou o mito de que, caso uma “mulher-cavaleiro” fosse vista sem seu adereço facial por um homem, a ela caberia duas saídas: matá-lo ou amá-lo.
E essa era a rígida estrutura na qual se organizavam, por séculos, os Cavaleiros do Zodíaco.

Capítulo 1 – A armadura sagrada de bronze de Pégaso

Seiya chegou muito jovem à Grécia. Quando menino, há dez anos atrás, pouco era o tempo que possuia para conhecer e brincar com as crianças da sua idade. Apesar de ter frequentado a escola local do vilarejo, o foco da sua educação estava nos exaustivos treinamentos físicos e mentais que sua rígida mestra, a “mulher-cavaleiro” Marin de Águia, respeitadíssima, apesar da aparente juventude - escondida pela máscara, mas não pela voz ou forma física - lhe aplicava. Tamanha rigorosidade era compatível à preguiça e vagarosidade do aprendiz, o qual, apesar de demostrar aptidão para o ofício, preferia dormir ou caçar animais nos bosques. Seiya era um aprendiz de cavaleiro, e seu objetivo era obter a armadura sagrada de bronze de Pégaso.
O grande dia estava próximo, com o rapaz prestes a completar 18 anos, dois pensamentos pairavam pela cabeça de cabelos castanhos e espetados dele: se tornar o cavaleiro de Pégaso e voltar para sua terra natal, o Japão, para encontar sua irmã, da qual já não tinha notícias há tempos. Seiya havia sido separado de Seika, sua irmã mais velha quando ele tinha apenas seis e ela, doze. Durante algum tempo ele acreditou que Marin poderia ser a “mana”, o que o levou, em seus ímpetos mais travessos, a tentar ver o rosto dela da formas mais absurdas, como durante o sono ou o banho.
Essas foram as tentativas mais fáceis, uma vez que no Santuário é comum professoress e alunos morarem juntos, afim de otimizar o treinamento, o qual é encarado de forma constante e permanente por ambos. Logicamente, para seu bem, Seiya nunca obteve sucesso, pois, apesar do apresso por seu aluno, se seu rosto fosse descoberto, Marin certamente o mataria, uma vez que ela também era conhecida como uma grande defensora das tradições dentro do Santuário, usando a máscara com orgulho e como prova de equidade aos homens, numa postura de reforço do machismo vigente. O rapaz pouco se importava com isso, e os rumores de que seria ela também oriental, só aumentavam a sua curiosidade. Entretanto, era grande a sua consideração pela mestra, sentimento recíproco que refletiu num treinamento que, se num momento era duro por parte dela, por outro era descontraído por parte dele.
Nesse exato momento, Marin encara Seiya à distancia, e ambos observam o grandalhão Cássius, no auge de seus 25 anos de muitos quilos e músculos, quebrar os dois braços de um outrora pretendente à armadura. A disputa acontece numa arena circular de chão de terra, com arquibancadas sólidas de madeira que estalam com a vibração de quem assiste, e do sol escaldante que faz no mediterrâneo. Seiya treme as pernas, mas faz questão de parecer tranquilo para os olhos de sua mestra e, o mais importante, para todos os seus rivais. O qual, nesse momento, configura-se apenas como o “pequeno” Cássius. “Nunca a armadura esteve tão perto... e tão longe ”, pensa.
Em oposição à tranquilidade de Marin, mas não dialogando com o temor de Seiya, a arrogante Shina ensaia mais uma provocação à Águia de prata. Como mulher-cavaleiro de prata de Ofiúco, Shina é tida como uma das mais “duronas” de todo o Santuário. Contudo, apesar de suas garras afiadas como presas de cobra, é na sua língua que reside todo seu veneno, e nesse momento ela profere todo o preconceito latente à presença dos orientais no Santuário. A mulher aparenta ter pouquissimos anos a mais que Marin, e o motivo de tamanha perseguição é que a luta final será decidida pelos pupilos de ambas, no melhor estilo oriente contra ocidente.
É nesse clima de tensão e muita torcida e bate-boca que o Grande Mestre inicia a última luta, com a arena esteticamente desbalanceada, já que de um lado se tem o grego peso-pesado Cássius e toda torcida “da casa”, passando por uma gama de gregos à mestra italiana. Do outro, a miudeza de Seiya, os poucos torcedores pró-orientais e um reforço indigno, segundo as más línguas, o jovem cavaleiro de ouro de leão, Aiolia, irmão do traidor e ex-cavaleiro de ouro de Sagitário, Aioros. Provavelmente, foi o estigma e preconceito sofridos pelo cavaleiro o qual o fez sempre apoiar Marin e Seiya em seus treinamentos frequentemente boicotados pelos europeus no Santuário. Marin sempre reconheceu isso, o que fez de Aiolia um aliado, uma vez que ela não se dava ao luxo de ter amigos, confiável.
Mal a luta começa, Seiya já se vê rolando pela terra na tentativa de escapar das pisadas de Cássius. Tudo que sobra é muita terra e uma enorme pegada no chão. “Certamente ele poderia ser um jogador de basquete”, são os pensamentos de um garoto que certamente tem dificuldades de se concentrar, e que por isso se encontra rolando e escapando de pisadas seguidas. Possivelmente ele agradece pela falta de tamanho e músculos proeminentes, o que lhe dá características de um ágil jogador de futebol. Seiya gosta de esportes, e lutar sempre foi o seu favorito, depois vem o futebol. Justamente, nesse momento, o grandalhão o chuta como uma bola, fazendo o franzino rapaz voar traçando um arco no ar, rolando três vezes, recebendo logo em seguida outro impacto. “Estômago e boca, como dói!”, são os pensamentos de  Seiya, cujo grito de dor é abafado pelo grito da enorme torcida de Cássius. “Nem parece que também estou jogando em casa”, alude Seiya enquanto cospe sangue, e repara como a mistura com a terra forma uma massaroca diferente de quando a secreção que pinga é suor. No momento, os dois escorrem e a situação não parece bem.
As lutas pela posse das armaduras não são fáceis, e violência é um recurso amplamente utilizado para invalidar o oponente e se conseguir a posse de uma delas. Ali não era diferente, e ninguém iria interromper qualquer movimento, por mais perigoso que fosse, pois isso configura um grande ensaio para a vida de um cavaleiro, que está sempre à beira da morte nos conflitos mais difíceis. Marin ensinou tudo a Seiya, e ela sabia que talvez seu discípulo não estivesse preparado. Enquanto Aiolia pedia gentilmente que Shina tivesse modos, ela só conseguia pensar numa motivação para tirar Seiya daquela condição. A professora conhecia bem seu aluno, e sabia o quanto sua personalidade pedia objetividade nas ações. Se grande era seu desvio de atenção, grande deveria ser sua motivação, um reforço que deveria atuar positivamente na concentração e busca da cosmo energia latente nos pré-cavaleiros. “Na ausência da cosmo energia, vence quem tiver a maior força bruta”, repetia Marin.
Cavaleiros experientes conseguem se comunicar através das ranhuras que seus cosmos criam no tempo e no espaço. Foi fazendo isso que, sem dizer uma palavra Marin fez Seiya lembrar de sua irmã, o reforço positivo da sua mente e do seu coração. Não é como falar, é sentir, e foi nesse momento que, cegado pelo sol e prestes a perder a orelha direita - “a orelha direita!” - sim, eram essas as palavras de Cássius, que cansado de espancar o “magrelo”, decidiu lhe punir por ter a pretensão de entrar na mesma arena de combate que ele. O público nem se chocou com a cena, pois ao longo da jornada dele pela armadura, muitos ossos se quebrarm, deslocaram e até mesmo caíram – apesar de desmembramento não ser sua finalização favorita. E assim, uma orelha voou pelos ares, como prometido, a direita. De repente caiu um grandão, que pela primeira vez estava indefeso, ajoelhado perante um garoto miúdo. O ar de arrogante na cara de Seiya era nítido. “Nínguem vai mexer na minha orelha!”. Disse, determinado. Apesar da decepação não ter sido uma bela cena, muito menos algo aprovado por Marin, o momento a seguir compensou tudo: o garoto desenhou no ar a posição das estrelas da constelação de Pégaso, como que dissesse “essa armadura é minha, eu sou o seu cavaleiro”. Em seguida, desferiu uma série de socos distribuindo-os no peito e na face. Quem piscou, perdeu, foram muitos socos, seguidos de duas palavras: “Meteoro”, o golpe que Marin lhe ensinou, baseado em seu “Águia de meteoros”, também baseado em socos; o detalhe foi a pretensão do garoto, que encaixou o nome “Pégaso”, apropriando-se do golpe e, consequentemente da armadura, uma vez que Cássius foi ao chão.
Foi uma luta difícil, sem dúvida. Muitos espectadores ressaltavam o caráter de sorte, enquanto outros, a técnica apurada. Mas todos que ali estavam, e que possuíam um mínimo de treinamento de cavaleiro em seus currículos, sentiram uma cosmo energia que vibrava com a constelação cuja armadura esteve em disputa, e, apesar do conflito ser considerado de baixa habilidade, por conter um excesso de golpes físicos diretos e pouco elaborados, mesmo para aspirantes a cavaleiros de bronze, a classe que Seiya demonstrou, além de sua ousadia, foi bem aceita, fazendo com que muitos o  aplaudissem de pé com o fim da luta, exceto a “mulher-cavaleiro” de Ofiúruco. Aiolia olhava contente para Marin, que por baixo da expressão gélida de sua máscara prateda, sorria.

Capítulo 2 – Fuga do Santuário

Apesar do sangue, suor e lágrimas da batalha, a cerimonia de posse da armadura teve início. Shina não acompanhou, pois teve que mobilizar vários soldados rasos e aprendizes de cavaleiros de bronze que por lá estavam para retirar o nocauteado Cássius. Apesar da lenda de que muitos ali poderiam quebrar rochas, destruir montanhas, rasgar o solo e inverter fluxos de quedas d'água, além de muitas proezas, quando se trata de fazer força, ainda mais num momento de premiação tão polêmica, com um oriental retirando uma armadura tipicamente grega de seu próprio solo, os cavaleiros perdem sua força e fazem “corpo mole”. Em resumo, retirar Cássius dali, estancar seu ferimento, sem chamar a atenção, deu trabalho a sua mestra. Shina saiu da arena jurando vingança.
Alheio a tudo isso, Seiya abria a urna e via uma armadura que pulsava vida, sem respirar ou se mover ela contia uma energia tão boa que por uns momentos ele até esqueceu que todo seu corpo doía. A iniciativa de colocar a armadura foi advertida pelo Grande Mestre, que lhe alertou sobre o uso devido em nome de Atena, na função dos Cavaleiros do Zodíaco como defensores, nunca como ofensores, sendo a armadura sagrada sua arma de proteção, do próprio cavaleiro, mas, principalmente de quem não puder se defender. O Mestre lembrou da função do Santuário como mantenedor da paz, de como sua articulação, ainda que velada nos órgãos mundias a partir da sabedoria da deusa, eram muito mais importantes que mil guerreiros, entretanto, a natureza humana jamais possibilitaria uma desmilitarização da instituição.
Tanto “blá, blá, blá” e burocracia deixaram Seiya disperso, que queria mesmo por sua armadura, viajar para o Japão e... contudo, nessa hora ele ouviu a palavra “desertor” e “morte”, o que o trouxeram de volta a conversa. “É isso mesmo que entendi? Estou preso a esse lugar?”. Para seu azar, uma vez selecionado como cavaleiro, seus serviços ficam à disposição do Santuário. Sendo assim, ele estava longe de uma vida típica de um garoto de 18 anos. Seu vestibular foi a batalha da qual acabara de lutar, sua profissão era lutar por Atena através da instituição Santuário e seu salário, bem, não falaram sobre isso ainda. O fato é que, ir embora daquele lugar com a armadura, ou mesmo sem ela, caracterizaria deserção, a qual só é passível de morte. Até o nome de Aioros foi citado, servindo de exemplo de punição em todas as escalas da hierarquia.
Depois de assinar uma papelada, sobre a alcunha de Seiya de Pegaso – afinal, finalmente ele tinha um sobrenome, pois todos seus registros se perderam quando este era muito novo ainda no Japão – e ter seus corpo e roupas limpos e ferimentos curados, o rapaz seguiu para a casa, sendo, ao longo do caminho, ora parabenizado, ora hostilizado. Ele era o primeiro japonês a conseguir uma armadura dentro do Santuário, feito este que não ocorria há pelo menos 200 anos. Chegando em casa, encontrou Marin, que o saudou da forma distante, porém acolhedora, costumeira. Sem pestanejar, ambos já começaram a bolar a saída do cavaleiro de bronze do Santuário.
•                 Chegou a hora, Seiya, pela madrugada você terá que ir embora.
•         Eu sei, Marin, espero por esse momento desde que cheguei ao Santuário. Tenho finalmente minha armadura, e agora preciso voltar para encontar minha irmã.
•               Sabe que não é assim que funciona, sua saída com a armadura será sua morte... sem ela talvez consiga escapar e, até mesmo, sem perdoado.
•                 Impossível, a armadura será a maneira para encontrá-la.
•                 Tem a ver com aqueles homens, os que te trouxeram a dez anos atras, certo?
•                 Sim, consentiu, com o olhar distante pela janela
Impressionava a cumplicidade dos dois, mesmo sabendo que ela mesma poderia morrer, Marin estava determinada a tirar Seiya daquele lugar, dando-lhe a chance de ter, ao menos a partir daquele momento ou por pouco tempo, a chance de ter uma vida mais serena. Ela sabia que, apesar de talentoso, Seiya era indisciplinado demais para atuar dentro de um lugar com regras tão rígidas e burocraticas como o Santuário. “Talvez ele consiga se virar como esportista, ou melhor ainda, como algum artista marcial”, pensava enquanto tentava se lembrar do tempo que vivia fora do Santuário, ainda menina, com seu irmão.
Com o cair da noite a única coisa que se via eram vultos se movimentando por entre velas, castiçais, tochas, casas, rochedos, pilares e guardas. A segurança primária do Santuário era ridícula até mesmo para aprendizes de cavaleiros, pois se tratava de soldados mal pagos e que, de alguma forma, não obtiveram um mestre disposto a treiná-los, ou mesmo que fracassaram na forma de seleção para uma das 88 armaduras das constelações zodiacais. Isso resultou numa força de coerção que servia apenas para afastar curiosos do entorno, ao menos durante a noite, pois durante o dia era grande a movimentação de turistas, que pagavam caro para acessar lugares remotos e de pouca importância dentro do perímetro do Santuário. Tudo pela lenda que pairava sobre Atena e seus defensores, algo tão distante quanto templos destinados a treinar monges ou guerreiros "deuses" ocupando o norte da Europa.
Tudo ia bem, com Marim percorrendo e mostrando o caminho à frente, e Seiya comodamente à seguindo, como dois ninjas na escuridão morna da Grécia. Tudo ia bem, desmaiando um aqui, escondendo outro ali e desviando de dois mais adiante, até que um golpe cortante cortou a noite, gerando um pequeno impulso elétrico na escuridão e atingindo o alvo de camisa vermelha e calças jeans azuis, todo enfaixado. Seiya caiu com o impacto, tendo a caixa de sua armadura jogada para trás, que jaziam aos pés de Shina. Ela estava mais imponente do que de costume, tinha ombreiras largas, joelheiras, peitoral, ou seja, estava vestida para combate. Sem muita conversa, ela partiu para cima, sem muita chance de defesa para o novato, que tomou muitas surras ao som de “morra estrangeiro”. Enquanto apanhava, Seiya procurava Marim, em vão. A luta era dificil, mas parecia se configurar no último obstáculo. Sem hesitar, o jovem desviou de alguns golpes e correu para sua armadura, a qual já se encontrava aberta e pronta para vestir. Enquanto corria para vestir a armadura, Seiya pensou que poderia ter disputado uma dourada, a qual veste seu cavaleiro através da vibração dessa energia a qual ele, apesar de também cavaleiro, pouco domina.
Shina ria ao ver seu inimigo tropeçando e colocando desjeitosamente os pedaços da armadura, e resolveu esperar para ridicularizar ainda mais o garoto que não sabia como encaixar as peças que estavam dispostas no formato de um cavalo alado. Tão finalizou, Pégaso tomou um chute no estomago e um arranhão na cara, além de vários golpes que evidenciaram as feridas do dia anterior. Caiu, sangrou e tomou mais pancada, esperou por Marim, para que viesse salvá-lo, mas percebeu com muito chute nas costas e cotoveladas, que estava sozinho e iria morrer ali se não fizesse nada. A armadura pesava e só afundava seu rosto, imprimindo detalhes da face na terra úmida. “Palavrão, palavrão, essa mulher só fala isso? Vou mostrar o que sei, um soco no estomago e ela cai antes que qualquer cara!”. Levantou, gritou e... teve o braço deslocado. Gritou de dor. Seiya era inexperiente demais, e a diferença de força entre cavaleiros de prata e bronze era evidente.
Enquanto desferia os golpes, dos mais variados, de joelhadas a socos duplos, ela provocava Marim, que estava sentada a uma distancia razoável, apenas olhando:
•                    Não vai ajudar o seu querido?, perguntava a cobra a provocar.
•             Ele não é mais meu, você sabe bem disso. Ao contrário do seu, que mais uma vez terá que se submeter aos seus treinamentos árduos e pouco eficazes.
•                  Não tenho mais discípulo. Cassius foi embora do Santuário esta noite. Eu estava a procurá-lo quando vi esse coelhinho e não resisti, disse Shina parando para conversar um pouco mais.
•                 É uma cobra mesmo, Shina de Ofiuruco. Sei que você procurava Seiya para se vingar do vexame que você passou indiretamente. Sorte do Cássius poder ir embora do Santuário sem sofrer retaliação, uma vez que ele não é cavaleiro. Mas pelo que sei, é seu segundo que se vai, não?
O tom provocativo atraiu uma para cima da outra de forma magnética. Apesar de equivalerem em força, Marim levaria desvantagem por não estar trajando armadura. O poder potencializado de Shina seria voraz sobre a mestra de Seiya, que apesar de experiente sofreria grandes danos. Foi com esse intuito que ele pulou entre ambas, cancelando o golpe de Shina e tirando Marim do centro do combate. Mais feridas se abriram no cavaleiro de bronze.
•                    Eu vou ser seu oponente, repetia de forma mantrica.
•                    Então hoje matarei um zumbi! “Venha Cobra, Garras do Trovão!”, gritava enquanto fazia sua posição clássica de ataque.
•                    É agora, me de a sua força Pégaso, disse em voz baixa, como uma oração. “Meteoro de Pégaso!”
Uma luta de 100 socos de mão esquerda – o braço deslocado de Seiya era o direito, e ele é destro - contra um golpe cortante em direção ao pescoço do oponente. Eram socos que não acertavam o alvo, contra um concentrado que cortaria, certamente, a cabeça do Pégaso. Seria sua morte, se não fosse a Águia, Marim, que reforçou o ataque do discípulo, atacando a oponente sem que esta esperasse, socos repetidos e focados, que desmaiaram a distraída oponente. Shina desmaiou com o impacto - costela quebrada. Sua máscara caiu, e Seiya viu o rosto de uma “mulher-cavaleiro”.
•                    Agora vai, disse Marim, pegando a rival no colo e indo em direção ao hospital da vila próxima dali, Rodório. Você a atacou enquanto tentava fugir. Não pude detê-lo, pois a encontrei segundos depois disso. Você é um desertor, se tornou um cavaleiro, soube das consequências, mas fugiu levando a armadura. Caçaremos você até o fim, Seiya.
•                    Mas, Marim...
•                    Nada de mas, você não é criança. Te apoiei até aqui, mas não posso ir além disso. Essa mulher foi atacada covardemente por mim, e você viu seu rosto. Tenho apenas isso para trocar com ela, isso será minha salvação. Meu ataque covarde pelo seu rosto exposto, disse olhando para Shina. Sabe o que isso significa?
•                    Ame-o ou mate-o, em voz baixa Seiya repetiu as falas de Marim
•                    Isso é uma tradição que nos iguala a qualquer um de vocês, homens e cavaleiros. Isso nos retira da nossa condição de inferioridade, apagando qualquer traço da fragilidade associada ao nosso mundo. Essa mulher, Seiya, te perseguirá até o fim, dessa vez com um grande motivo que envolve sua honra, eram as palavras de Marim, que mostravam grande respeito por aquela que dormia em seus braços.
•                    Marim, me desculpe.
•                    Agora vai, Seiya. Você trabalhou para isso. Te desejo sorte.
E partiu, a passos lentos, como se, apesar das palavras duras, não tivesse pressa para denunciar a traição de seu discípulo. E ali ficou o Pégaso, como se tivesse quebrado a asa e não pudesse mais voar. A escuridão era densa e a noite, quente. Uma grande despedida com inspirações no teatro grego. O espetáculo foi para poucos.

Capítulo 3 – O Coliseu

Saori Kido cresceu no Japão. Aparenta ter 15 anos, e se orgulha disso, mesmo já com 18 anos completos. A maioridade permitiu, finalmente, que assumisse os negócios de seu avô adotivo, Mitsumasa Kido. O fato de ser adotada nunca atrapalhou seu desenvolvimento como uma legitima “patricinha” e agora pretensa “socialite”. A questão do estatus sempre esteve presente em seus pensamentos, e a Fundação Galacta, a empresa de Mitsumasa.
Vários eram os negócios administrados pelo biliardário, dentre eles uma série de orfanatos, cujo transito de órfãos permitiam a movimentação de divisas que enriqueciam ainda mais os cofres da fundação. Também investia-se em pesquisas ligadas à tecnologia, desenvolvendo armamento e roupas de finalidades militar, junto ao governo japonês. A ascensão de Saori ao comando da empresa abriu mais um leque, muito bem visto pelos associados: os shows de televisão.
A onda crescente de campeonatos de luta no mundo abriu precedentes para a criação de um extremamente legitimo: a Guerra Galáctica, a luta entre mitológicos e surpreendentes Cavaleiros do Zodíaco pela armadura dourada, única no mundo. Transmitido em todo país pelo payperview, esse programa milionário encontrou a parceria das Empresas Solo de Transportes Marítimos, que tem em seu herdeiro, o jovem  Julian, de apenas 21 anos, o principal entusiasta e parceiro profissional, além de candidato a amante de Saori. Vários são os dólares que ambos empresários nessa empreitada movimentam, e a todos interessa que essa relação apenas se aprofunde.
Com tantos interesses em vigor, uma coisa preocupa os organizadores, principalmente Solo e Kido: a não adesão de todos os participantes ao evento. Onde estão todos os lutadores? Para reuni-los - O velho Kido havia espalhado mais de 100 de seus órfãos pelo mundo, na esperança de que ao menos a metade se tornassem Cavaleiros - Saori organizou tal torneio, oferecendo um prêmio cobiçado: a armadura de ouro.
Aos poucos chegavam os guerreiros, velhos companheiros de infância que agora retornavam com imenso potencial destrutivo, e muita vontade de por a prova os longos anos de treinamento por que passaram. Ban foi o primeiro, entregando a armadura sagrada de bronze de Leão Menor, cuja urna foi depositada num altar ali no Coliseu mesmo. Saudou a senhorita Saori com frieza - era indiferente a sua pessoa - mas algum acordo secreto o obrigava a estar naquele torneio.
Assim como Ichi, cavaleiro de bronze de Hidra, seguido de Nachi, cavaleiro de bronze de Lobo, que saudavam a todos, sem muita cerimônia - principalmente Ichi, o mais despachado - cujo comportamento era reprovado pelo rígido Tatsumi, o mordomo de meia idade que atendia a todos os chamados da senhorita Kido. Três urnas já estavam no Japão, o percentual era baixo para o tamanho investimento da Fundação.
- Órfãos deveriam dar dinheiro, e não tirar - pensava Saori, enquanto olhava para os outrora colegas de infância que cumprimentavam-se e abraçavam-se. Ao fundo, Tatsumi corria com a papelada de cessão de direitos de imagem, doação das armaduras, vouchers de alimentação e tudo mais acordado para a participação do evento televiso.
- Que construção imponente - pensava Seiya andando calmamente pela avenida que desembocava no Coliseu, o endereço ao qual se dirigia para recuperar os contatos de sua infância - ou seja, sua irmã - Bah, na verdade, isso não chega aos pés da aura do verdadeiro Coliseu. Na verdade, ele havia ido a Roma apenas uma vez, numa das raras folgas, mas o passeio ao menos inclui uma visita a fachada da histórica construção. Carregava nas costas a urna da Caixa de Pandora que continha sua armadura. Parecia pesada. Seu jeans estava surrado e sua velha camiseta vermelha, desbotada. Faixas protegiam seus ferimentos, ainda em recuperação da contenda contra Cassius e Shina.
Não foi preciso falar muito na portaria. Os seguranças tinham orientações para deixarem passar qualquer ser que carregasse uma "mochila de metal" nas costas, por mais estrupiado que estivesse o sujeito. Já havia se passado alguns dias desde a chegada de Ban e dos outros. Num ginásio perto da entrada, pelo vidro, um grandalhão se exercitava. Seiya reconheceu Geki, mas este não o viu. Outros rapazes treinavam, mas ele nunca os havia visto antes. Seguia para a sala da diretoria, ouve uma voz peculiar:
- Seiya!
- Shun?
- Como vai meu amigo? Desnecessário dizer que faz tempo!
Shun era um cara muito legal. Gentil até demais, era polêmico por ser um pouco rude, às vezes, meio bipolar. Não era o caso ali, em que o rapaz acolhia o amigo de forma próxima e fraternal.
- Shun, quem está aqui?
- Não sei dizer ao certo...éramos muitos, voltamos poucos. Vi Shiryu pelos corredores. Jabu também está aqui.
Seiya faz cara de quem não curtiu muito a ideia de reencontrar esse último.
- Tá, e seu irmão, já voltou?
- Ikki... ainda não...
O garoto amoleceu. Shun era um pouco mais novo que a maioria ali presente, tendo apenas 16 anos. Seu irmão, Ikki, era um dos mais velhos e já devia estar com 20 ou 21. Na infância, o mais velho protegia o mais novo do bulling praticado pelos outros meninos. Shun era muito delicado e mesmo mais velho ainda carregava um ar infantil, quase feminino, com cabelos castanhos e pele clara, bem cuidados. A fala mansa não ajudava a impor algum respeito. Era difícil para Seiya realizar como este poderia ter se tornado o cavaleiro de bronze de Andrômeda. "O treinamento na Ilha de Andrômeda devia ser moleza", pensava.
Antes da despedida combinaram de se encontrar, afinal, não fazia sentido trocarem sopapos no ringue sem ao menos se atualizarem sobre a vida um do outro. Na verdade, Seiya não fazia ideia de quem encontraria pelo caminho. O que ele tinha claro em mente era que exigiria o prêmio pela sua conquista: Seika. Lutar não estava nos planos, era entregar a armadura e cair na estrada junto com a irmã, e ponto final. Ele apenas não contava com a ardilosa herdeira de Kido, que o aguardava na sua sala.
- Deixe-o entra sem bater, disse ao "faz tudo" Tatsumi.
Seiya não bateria mesmo. Não estava afim de se curvar a neta do homem responsável por tornar sua vida um inferno. Foi entrar e começar o bate boca:
- Isto lhe pertence, senhorita - disse retirando a armadura das costas e abrindo a caixa.
- Realmente muito bela, bom trabalho Seiya. Aliás, bem vindo ao lar - dizia de forma doce, encarando-o nos olhos.
- Corta essa, Saori, quero apenas que me diga onde está minha irmã - disse o rapaz bravo. Tatsumi já se preparava para repreende-lo - Nem venha, velhote. Isso é entre ela e eu!
Descontrolado e ansioso, Seiya queria uma resposta logo. Falava partindo para cima da menina que "tocava o terror" no orfanato, pois era a neta do dono, que nada interferia nos jogos de poder estipulados por ela. A verdade é que entre todos aquele mais de cem jovens, o medo imperava, colocando-os na posição de súditos da princesinha Saori. Sempre sobrava para alguém, que se descordava era imediatamente repreendido pelo imponente - naquela época - Tatsumi.
No entanto, o jovem estava determinado a mostrar que as coisas mudaram. E é aí que ele leva um belo chute nas costas, que o derruba aos pés da moça, que descalça e de vestido ressaltava seu ar de dona da casa. Ao olhar para trás, Seiya vê a figura de um homem de chapéu de caubói e barba por fazer. Reconheceria esse ar country de longe: era Jabu, o cavaleiro de bronze de Unicórnio que ali se apresentava.
A rivalidade dos dois era latente. Jabu sempre teve uma queda pela jovem, fazia todos os seus caprichos e mesmo depois de tanto tempo, ainda atuava dessa maneira. Atacou Seiya por esse parecer descontrolado, era o que alegou. Queria medir forças.
- Vagabundo! Gritava para o outro.
- Pode vir, cachorrinho - esse apelido era a forma como Jabu era conhecido entre os meninos do orfanato, devido a subserviência aos pedidos dos Kido, especialmente de Saori. Isso lhe rendeu muitos cafés da tarde na mansão, além do título de vigia do orfanato.
Se atracavam ali, com socos, chutes, joelhadas, cotoveladas, esquivas e defesas bem treinadas. Tatsumi, num momento segurança, tentou impedir e levou um murro no queixo, parecendo até proposital (o velho maltratava os garotos, castigando-os severamente com sua espada de Kendo, sua arte marcial preferida). Como dá para perceber, a vida não era e não continuava fácil para os ex-moradores do orfanato Filhos das Estrelas.

Capítulo 4 - A Guerra Galáctica

"E não percam, começa nessa sexta o maior espetáculo da Terra! Vem aí, Guerra Galáctica!"
- Uauuu! Exclamava Makoto, que assistia TV junto com seu amigo gordinho Akira. Os garotos moravam no orfanato Filho das Estrelas, com mais algumas poucas crianças (pouco mais que duas dezenas). Mantido pela Fundação Galacta, vem diminuindo constantemente sua assistência aos órfãos. Ao menos a situação havia melhorado desde que Mino administrava o local. Tinha por volta de 19 anos, mas era extremamente madura para assumir tal responsabilidade, a qual levava a sério, pois ela havia sido uma das crianças sem família moradoras desse mesmo local.
Cresceu ali, ao lado de Seiya, Shun, Ikki e tantos outros, sob a batuta rígida de Tatsumi, os mimos de Saori e a indiferença de Mitsumasa. Viu os amigos partirem para a Grécia, Ilha de Andrômeda, a temível Ilha da Rainha da Morte, enquanto ela mesma ia ficando. Não levava jeito para os esportes, preferia a dança. Pessoa de extrema sensibilidade, nesse exato momento recebia a visita do velho amigo Seiya, que voltava após muito tempo. O rapaz lhe contava sobre a proposta que havia recebido da senhorita Kido:
- Aceite, tonto! dizia surpresa e irritada.
- Mas, Mino, não quero entrar no joguinho daquela mimada.
- Seiya, deixa de ser bobo. Você será visto em rede nacional, ganhará visibilidade nas manchetes, todos verão seu rosto, inclusive ela.
- Tem razão, a Seika certamente estará assistindo e me procurará. E se eu ganhar, como te disse, a Saori utilizará todo o aparato da Fundação Galacta para encontrar minha irmã. De qualquer forma, já estou ganhando.
- Você já é o campeão, Seiya.
Terminaram a conversa abraçados. Realmente eram muito amigos. Makoto e Akira ouviam e observavam tudo, empolgados. "O namorado da Mino vai aparacer na TV, uauuuuu!"
Nesse momento, o campeonato já contava com sete participantes. Seiya ligou para a organização e confirmou presença. Há dois dias do início, a expectativa era de que ao menos 20 órfãos retornassem. Saori pensou em cancelar o evento, mas em respeito a memória do seu avô, e aos negócios, manteve os preparativos da Guerra Galáctica.
A mídia estava em polvorosa. Falava-se de combate entre semi deuses, colocando qualquer outro evento de luta para escanteio. Entrevistas eram marcadas, tendo sempre Tatsumi como porta voz.

- INFELIZMENTE ESCREVI ATÉ AQUI! -




Monólogo depressivo para Dr. João, psiquiatra

Segunda feira, 18 de fevereiro de 2014.

O remédio acabou.  A partir daí, crise. Abstinência causa tontura, irritação. A cabeça vai a mil: o filme passa e repassa dúzia de vezes. Nele, sou um desastre. Sempre errado, aquém, sem objetivo. Desmotivado e desencantado. Nesse efeito bola de neve, me afasto das pessoas sem perceber.

O depressivo é antes de tudo um chato. Todos entendem na primeira queda, torcem para que a segunda seja a última e desistem da pessoa na terceira. Como ser forte se a impressão é que meus pés estão fincados em areia movediça?

Diante desse quadro, uma cena se repete várias vezes no filme inquisitório que minha mente me apresenta: suicídio. Uma ponte, uma corda, um atropelo. Só assim para fazer tudo parar. Desistir não por desistir, desistir com tragédia, justificando com requinte toda dor e incapacidade ali demostrados.

Retrocedendo na análise, me lembro de que me sinto sozinho por aqui, em Sorocaba (mas convenhamos, vim para cá porque já me sentia assim em Araraquara). Sem família, amigos, namorada. É uma insatisfação que não condiz com a condição de quem vê de fora: um bom emprego, um lugar bom para morar, estatus.

No ano novo percebi que não estou sozinho, só estou distante. Sinto falta das grandes amizades, dos cuidados com a família, de pertencer a um lugar. Aqui parece que só existo. As relações se dão em níveis profissionais, e eu queria ser muito mais que uma instituição.

Além do mais, é incrível como as coisas se misturam atualmente: o pessoal e o profissional estão intrinsecamente envolvidos. Com esse peso da profissão na minha vida, desde que comecei com esse trabalho, associo a ela como causadora das crises. Como fazer o que não se gosta?

Não sonhava em ser gestor de cultura, ter equipe, coordenar projeto. Para mim as coisas eram mais simples e se davam na esfera da criação, do planejamento e da pesquisa, coisas que tem menos importância que a execução, a burocracia, o agendamento.

Daí que sou teimoso, um reflexo do meu corpo e da minha mente. Crio freios naturais, passo a me dar menos. Atualmente sou um maldito no lugar que ocupo, considerado um doente, um fraco, um despreparado. Como continuar assim?

Pedir feedback? Tentar me reaproximar? Não olhar para as desconfianças e dar o melhor sob qualquer circunstancia? Como fazer isso sendo teimoso e desmotivado, em tratamento quanto aos aspectos depressivos? Como lidar, uma vez ansioso diagnosticado, com o “coração na boca” que um trabalho de produção cultural – com seus inúmeros pormenores – gera?

Passei esse último final de semana em estado de choque, sem querer sair da cama, sem querer comer direito. Olha aquele velho quadro de volta, com o agravante de o remédio ter acabado. O combinado era ir a MG, ao consultório em Andradas, reavaliar as coisas, rever o tratamento, rever os amigos, a família e ter bons momentos. Seria uma folga muito boa.

Nada disso aconteceu, e fiquei 48 horas em casa, assustando quem me via. Hoje, dia da consulta, estava em Sorocaba, querendo que o dia não fosse uma extensão do final de semana. Enfim, sai, fui fazer minhas coisas: açaí com uma amiga – outrora paquera - que se descobriu lésbica (isso é engraçado, ela é linda e achei que tinha dado sorte, mas ela está tão perdida na vida quanto eu estou na profissão – meio que me decepcionei), treino de karatê, treino de aikido.

É incrível o poder que essas artes marciais estão exercendo na minha vida! O prazer do exercício, coisa que não sentia em uma academia, em uma corrida ou em uma natação, tenho nessas lutas. De segunda treino as duas, e tem sido ótimo. Fora isso, sempre tem uma guria para apreciar!

Meu medo é o desenrolar da semana. No final de semana estava certo e determinado em pedir as contas. O faria amanhã, na terça, e já estava em processo de arrumar as malas, ir desocupando tudo e partir. Nesse exato momento, às 1h39 da manhã, ouvindo Jefferson Airplane e curtindo muito a “vibe” setentista, não penso assim. Pelo contrário: amanhã quero dar tudo de mim!

Mas a minha vida tem sido uma montanha russa maluca, e ao me deparar com os problemas, entro em crise e termino a semana do lado oposto da sensação que estou agora. Falhas na gestão do meu trabalho? Pode ser, mas no fundo da minha cabeça sempre tem alguém dizendo “você não estudou para isso”. E então caio nesse ciclo de desespero.

Em caso de demissão, penso em voltar para MG e cursar Publicidade na Puc de Poços de Caldas. No campo do ideal, parece uma ótima opção, mas viajando pelo site já vi coisas que não me agradam, pois creio que já passei por isso na graduação anterior e, de fato, talvez tenha me acostumado a essa boa vida que o dinheiro do meu trabalho dá: enfim, liberdades.

Posso viajar, posso comer (coisas) gostosas, se quiser posso me vestir bem, se quiser posso ter carro... enfim, é um campo vasto para um “menino” de 30 anos! O que nos leva a outro ponto, e talvez um dos cernes dessa crise toda (que já tem mais de um ano): quando efetivamente me tornarei adulto? Quero dizer, consideremos que ter vontade de jogar tudo para o alto e correr para a casa dos pais é um sinal enorme de imaturidade. Mas crescer e trabalhar são assim tão chato? Será que eu não posso – será que é errado – eu querer viabilizar outra forma de viver para mim, enquanto ainda posso me arriscar? Sair de emprego, investir em nova formação, tentar outras oportunidades, ainda que mais tímidas financeiramente. Numa dessas posso correr o bendito risco de fazer o que gosto.

Nesse tempo de Sorocaba sinto que não desenvolvi nada: as relações são frágeis, não conclui nenhum curso (pelo contrário, perco muito dinheiro me matriculando e depois desistindo). Sinto que isso me desgasta também, e gera um efeito cascata que reflete no meu comportamento juvenil.

Daí que o gatilho dessa última crise me mostrou o quanto esse quadro exerce uma desconfiança em meus superiores, que me tiram atribuições e me enxergam cada vez mais de um jeito pior, tudo porque não gosto da burocracia que invade nosso trabalho. Numa dessas descobri que fui a terceira opção para um projeto que sinalizei interesse primeiro. Então, ao invés da proposta - que ocorreu por indisponibilidade das duas escolhas anteriores – vir como “acreditamos em você”, surgiu como “desafiamos você”. Não sou burro, pego as coisas no ar, sei quando minha “batata está assando”. Logo, o que fazer num quadro desses, cuja instituição – conhecida por não mandar pessoas embora, mas congelá-las no quadro organizacional – opta por política entre os funcionários, o tempo todo.

O fato de me ver fora dessa situação, ainda que ciente de que outras desse tipo podem acontecer dentro e fora desse emprego, me faz gostar de me (re) imaginar estudando, ainda mais algo que sempre quis. E nesse impasse, vou me sentindo cada vez mais acuado dentro do panorama atual da minha vida. Se ficar no Sesc, para que fazer outra graduação (correndo o risco de perder as atividades que vem me fazendo tão bem, devido ao tempo que terá que ser investido)?  Se for embora, como será retornar para a casa do pai, voltar para uma cidade pequena e ter que retomar a luta para sair desse quadro, dessa vez sem tanto apoio quanto antes? O que os outros irão dizer?

Nesse panorama de dúvidas, receios e insatisfações, o desespero pior é o samba na navalha que é a depressão, a qual me dificulta tanto a vida nessa cidade que não está me provendo nem amores, nem (re) conhecimentos, nem amizades – algumas razões para permanecer (sempre me pergunto: por que estou aqui?). Fora toda essa sensação de impotência, desenvolvida ao meu redor pelo fato de ser quem eu sou, de não conseguir ceder, adaptar ou mesmo fingir, ainda que pelo meu próprio bem.
Nisso, surge a irônica persona que estou fundando, detentora de piadinhas e sacadas inteligentes para desmanchar o peso de estar lá, naquele ambiente um tanto inóspito. O que, obvio, só reforça o fator desconfiança e a imagem de imaturo percebido por terceiros, já expostos aqui. Sou fraco demais...

Sendo assim, fica a pergunta: como tomar as rédeas da minha vida? Em que medida, nesse sentido, o tratamento médico por via de remédios antidepressivos não está menos acalmando e mais reforçando uma complacência em relação a algo cujas partes envolvidas (pessoa e profissão) não estão satisfeitas. É tão pecado assim querer mudar, se arriscar, pagar para ver?
Por outro lado, em relação à condução de uma carreira profissional a partir de um dilema pessoal, deveria eu me comunicar mais com os líderes e solicitar informações, questionar, negar, enfim, me colocar enquanto profissional maduro e sensato nesse campo empresarial, do qual eu achava que não fazia parte? Em minha inocência e despreparo de primeiro emprego, acreditei por muito tempo que lidava com as questões do espírito, da produção artística e cultural, pelo viés da fomentação tendo em vista sempre a educação do público. No momento, me acho mais um burocrata que organiza os procedimentos de criação dos outros, acomodando tudo da melhor maneira para sua realização. Desmotivador.

“Quem não gosta que se mude”, diz o ditado geral. E será que sou tão sem talento que não posso conseguir um salário generoso em outro lugar? Ou seria isso um delírio da geração Y, na qual me insiro – que acredita que nasceu sob a estrela do destino inevitável de se tornar alguém de sucesso em qualquer carreira escolhida? Em suma, o que sinto é desvalorizado, seja pelo trabalho, seja pelos amigos, seja pelos amores. Sobra-me a família, mas não queria aumentar o problema e a preocupação que incido sobre eles, ainda mais com chances de onerar economicamente um pai cansado.


É duro perceber, tudo que foi sólido se desmanchou... quem sou eu, apenas essa mancha no chão?

Quem?

Minha foto
Já dizia o poeta: cabeça_bit em mundo_tera, tanto_byte até que_ferra. Pois é, é_tudo_tanto e tudo_é_tão, que à partir daí_dá pra perceber que uma cuca normal não aguenta. Assim, pra dar conta desse_todo, e como_catarse, surgem as produções d'alma. Em forma de pitacos, quase como petiscos, daqueles bem pequenos, pititinhos. Coisa dessa "gente_esperta_e_simultaneamente_demente"...